I.
Ao traduzir um texto para a língua materna, o domínio da língua de chegada, isto é, aquela para a qual se traduz, é mais importante do que o conhecimento perfeito da língua de partida. Um estilo apurado na língua materna compensa falhas de conhecimento no idioma original.
II.
Um caso particularmente interessante, digno de nota, é o do chinês Lin Shu. Sem conhecer outros idiomas perfeitamente, contando com a colaboração de outras pessoas, assim como alguns de nossos escritores mais célebres do século XX faziam, ele traduziu cerca de 200 romances e ajudou a transformar todo o panorama cultural chinês de então. Quando o tradutor é de fato um escritor, pequenos equívocos ou desvios são insuficientes para arruinar o seu trabalho.
Aquele que não tem ouvido literário não pode ser salvo nem mesmo por todos os recursos filológicos do mundo. Está em situação parecida com a de alguém que conhece de cabo a rabo o dicionário mas é incapaz de juntar suas palavras.
III.
Como dito por Jerônimo:
Non verbum e verbo sed senso exprimere de senso.
O que a tradução deve fazer é exprimir o mesmo sentido do original, e não se limitar a, maquinal e literalmente, repetir palavra por palavra do que escrevera o autor. Isto as inteligências artificiais também já são capazes de fazer, cada vez melhor, cada vez mais rápido. O foco deve ser direcionado à transmissão da essência do texto, não da mera equivalência lexical, ao contrário do que muitos, neste país servil e envergonhado de não falar inglês ou francês, pensam, sejam eles editores ou tradutores amantes de manuais e inimigos da boa escrita.
IV.
Outro exemplo, este um pouco menos extremo, é o das traduções de Kafka feitas por Alexandre Vialatte para francês, que apesar de conterem erros que muitos considerariam imperdoáveis do ponto de vista filológico, capturaram o gênio essencialmente cômico de Kafka, algo que as traduções mais precisas, em sua robótica frieza, não conseguiram fazer.
No Brasil, o excelente Modesto Carone também o conseguiu, apresentando ao leitor de seu texto sutilezas que só encontramos no original em alemão.
Como salientou Celso Cruz, em seu estudo sobre as edições brasileiras de A metamorfose, o mérito de Carone vai muito além do fato de ele ter traduzido direto do alemão com fidelidade, devendo-se sobretudo à sua capacidade de inovação na escrita e posterior análise crítica.
V.
Não, um texto original não é insuperável apenas por ser o original, como tolamente alguns podem crer. Muitas vezes acontece de um tradutor melhorar o texto com a riqueza de seu próprio estilo e tornar mais vigorosas expressões que, no texto original, careciam de força e brilho.
Sou do time do Millôr Fernandes: traduzo com fidelidade absoluta, mas se Shakespeare me deixar na cara do gol, eu chuto sem pensar duas vezes.




Muito bom, Lucas! Realmente, nas traduções literárias atuais, não raro, os tradutores têm se esquecido um pouco do fator literário, detendo-se apenas no quesito filológico. Eu sempre pensei que metodologia, em tradução, serve apenas como ponto de partida, mas que o fator determinante é o tradutor. Aquilino Ribeiro tomou muitas liberdades em sua tradução de Dom Quixote. E, no entanto, para mim, fez a melhor tradução da língua, tão boa que parece que Cervantes escreveu em português. Fernando Pessoa, ao contrário, queria ser o mais fiel possível ao original, e produziu uma tradução que é também uma obra-prima em A Letra Encarnada. Os exemplos abundam.
Um deleite de texto! Parabéns!