Josef K. às avessas
Notas acerca do filme "Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita", de Elio Petri
Mesmo em democracias liberais o aparato estatal revela-se um Leviatã cuja maior prioridade é a autopreservação institucional. É o que vemos no filme italiano Investigação sobre um cidadão acima de qualquer suspeita, obra-prima do diretor Elio Petri, lançada em 1970 e ganhadora do Oscar de melhor filme estrangeiro daquele mesmo ano.
Às vésperas de sua promoção ao setor de assuntos criminais responsável pelo combate à subversão política em Roma, um megalomaníaco inspetor de polícia sem nome, porque seu nome e sua identidade não importam, apenas a sua condição de cidadão exemplar e acima de qualquer suspeita, bem como a ideia que ele personifica, assassina a amante durante um dos estranhos jogos sadomasoquistas com os quais os dois costumavam se divertir em suas tardes de ócio. Em vez de esconder o crime, age de modo paradoxal: na ânsia de ser pego e punido, deixa por toda parte pistas que levam os investigadores ao seu encalço.
Mas quem disse que alguém é capaz de prendê-lo, sequer de incriminá-lo? Com a narrativa já envolta pelas penumbras do sonho, ele chega a entregar uma carta de confissão ao seu superior hierárquico imediato, e no entanto este a rejeita peremptoriamente, trata-a como um desvario, e obriga o inspetor a escrever uma segunda carta, desta vez confessando a própria inocência.
Insatisfeito, o protagonista mostra a todos os agentes envolvidos na investigação do caso fotos que tirara com a amante, mas eles as rasgam, fechando os olhos em conjunto para a realidade. Aplicar-lhe a mesma punição dada ao povo, de quem supostamente emana todo o poder, é uma impossibilidade, e sua única culpa é a de querer provar-se culpado, porque afinal de contas as instituições e seus representantes são sempre inocentes.
A lógica perversa do sistema regulador da sociedade determina que, afinal, reconhecer publicamente a criminalidade do principal investigador dos assuntos criminais representa uma terrível ameaça à ordem pública e ao Estado democrático de direito, tanto no contexto do filme, num período pós-maio de 1968, quanto hoje e amanhã. Ainda que signifique também proteger o criminoso que habita em seu seio, a instituição faz o possível para proteger-se.
Temos aí, portanto, a problemática fundamental: conquanto a democracia conceda ao Estado o legítimo monopólio da violência, esse mesmo Estado não é de nenhuma forma uma entidade abstrata que existe tão somente no inconspurcável mundo das ideias. Ele é, pelo contrário, um conjunto de indivíduos e grupos que, talqualmente toda a humanidade, são passíveis de corrupção e de cometer abusos de poder e autoridade. De nossos guardiães, quem nos guardará?
O filme, uma sátira kafkiana, termina com uma frase do romance O processo, do próprio Franz Kafka: “Não importa que impressão nos passe, ele é um servo da lei, pertence à lei, e sobre ele não recai o julgamento humano” [tradução literal do que aparece na tela em italiano]. Aquele que é encarregado de aplicar a lei aos homens escapa de sua jurisdição.
Nem os meios de comunicação, nem o sistema judiciário, nem os representantes eleitos, nada é capaz de vencer as forças malignas que dominam o Estado moderno. Pelo contrário, todos esses agentes são seduzidos por elas e tornam-se parte do problema.
Vale muito a pena ver o filme. Embora o ritmo seja lento e a história demore um bocado a engrenar, o último terço apresenta momentos hilários e é surpreendentemente bom.
Excelente, Lucas! Muito bom que você traz estas resenhas de filmes, são bem arquitetadas, e também nos ajuda a ter ciência desses filmes que não são tão famosos.
Muito bom, Lucas! O Estado moderno é, por excelência, um bicho que não deixar escapar nada que ele não possa deglutir. Mais que um resultado abstrado de resoluções burocráticas, é algo muito concreto, que, ou representa seus líderes, ou os dobra.